Duas crianças recém nascidas, uma em Salvador, Bahia, e outra em São José do Rio Preto, São Paulo, foram os primeiros bebês brasileiros portadores de gastrosquise a serem tratados por um novo procedimento cirúrgico, a técnica Simil-EXIT, idealizada pelo Dr. Javier Svetliza, um cirurgião argentino e apresentada em um congresso internacional no ano de 2014.

O primeiro relato de uso da nova proposta no Brasil veio da Maternidade Prof. José Maria de Magalhães Neto, em Salvador, na Bahia, no dia 18 de julho de 2014, por uma equipe de Cirurgia Pediátrica comandada pela Dra. Célia Britto. No dia 28 de julho de 2014, foi a vez da equipe de Cirurgia Pediátrica liderada pelo Dr. Paulo Nakaoski realizar o procedimento no Hospital da Criança de São José do Rio Preto, no interior paulista.

A nova proposta e suas possíveis implicações no tratamento das gastrosquises foram divulgadas e amplamente discutidas no grupo “novo-uroped”, um fórum internacional de discussão em Cirurgia Pediátrica, que envolve cirurgiões de todo o país e da América Latina, além de médicos na Europa e América do Norte. Muitos pontos importantes foram levantados, em especial que implicações a nova técnica poderia ter em termos de logística periparto e que vantagens traria aos bebês vítimas de gastrosquise. Estas crianças, no atual estado da arte, frequentemente precisam de internações hospitalares longas e longos períodos de nutrição parenteral exclusiva, com muitas complicações infecciosas, vasculares e hepáticas, além de altos custos e grandes dificuldades para as famílias.

Considerando a importância prática do assunto, já que gastrosquises não são raras e têm sido cada vez mais incidentes na população brasileira, além do grande interesse e vívida discussão a partir destes primeiros dois casos nacionais, a CIPERJ entrou em contato com a Dra. Célia e com o Dr. Nakaoski para que pudessem nos dar suas impressões sobre o procedimento, notas técnicas e logísticas a respeito e a evolução dos pacientes, especialmente se comparados a outros casos de gastrosquise, tratados de forma convencional.

Abaixo os relatos de nossos ilustres colegas da Bahia e de São Paulo:

Dr. Paulo Nakaoski, chefe de Cirurgia Pediátrica do Hospital da Criança de São José do Rio Preto

Gastrosquise é uma malformação congênita, que mantém fora da cavidade abdominal do feto uma grande parte dos intestinos, por vezes incluindo até o estômago. É consequência de um problema no fechamento da parede abdominal na fase fetal, persistindo um anel aberto ao lado do cordão umbilical, que mantém as alças intestinais fora da cavidade abdominal. É uma doença que varia em incidência entre 1:4000 a 10000 recém-nascidos vivos, dependendo da população. Acomete mais mulheres jovens e primíparas e a ocorrência vem aumentando de maneira acentuada nos últimos 10 anos em todo o mundo. O diagnóstico pré-natal é bastante simples, bastando um ultrasom pré-natal, desde o terceiro mês de gestação.

Nosso Hospital da Criança e Maternidade conta com uma equipe multidisciplinar de medicina fetal, e assim que tivemos o conhecimento das publicações do Dr. Javier Svetliza, buscamos um contato, buncando informações. Dr Javier prontamente nos prestou todas as orientações necessárias para o êxito da técnica, desde as medidas da relação “alça sentinela” (a mais dilatada no exame de ultrasom) e o tamanho do anel abdominal, inclusive os limites dessa relação por ele proposta.

Cabe ressaltar que somente os casos de gastrosquise detectados de maneira precoce e cujo acompanhamento dessa relação “alça sentinela”/anel herniário possa ser feito quinzenalmente (semanalmente após a trigésima quarta semana de gestação) são passíveis da aplicação da técnica simil-EXIT.

Nesta técnica, que é um pouco diferente da técnica EXIT, a mãe recebe anestesia peridural para a cesárea. Após a retirada da criança é administrada por via endovenosa na mãe uma droga opióide (alfentanil) em doses proporcionais ao peso provável da criança, que fica mantida sob sedação superficial, enquanto é feita a redução das alças exteriorizadas para a cavidade abdominal.

A orientação técnica é iniciar a redução à cavidade pela alça mais dilatada (sentinela). Na sequência os demais segmentos intestinais expostos são reduzidos. Conseguida a redução total o orifício da gastrosquise é ocluído com o dedo por um dos cirurgiões, o cordão umbilical é ligado e a criança transportada para um berço aquecido ao lado da maca cirúrgica utilizada para a cesárea. A seguir o anel da gastrosquise é infiltrado com anestésico local (xilocaína) e fechado com sutura em bolsa no peritônio e pontos simples na pele.

Desde o momento em que a criança é retirada do útero, seguindo práticas modernas de analgesia perinatal, é colocada uma chupeta com soro glicosado em sua boca, o que a mantém tranqüila, sem chorar e respirar, impedindo a piora da dilatação das alças expostas pela deglutição de ar. A oxigenação sanguínea do bebê é mantida pela persistência da circulação placentária, mantendo a circulação sanguínea do bebê através dos vasos umbilicais.

O tempo entre a retirada da criança do útero e a sutura da pela da lesão demora cerca de 15 minutos, sendo que os 10 minutos iniciais são dedicados à redução das alças, com a criança ainda oxigenada pelo o cordão umbilical.

Os riscos maternos são praticamente idênticos a uma cesariana normal, sendo que esta técnica, além de reduzir os custos e os riscos de uma cirurgia convencional em um RN prematuro, também abrevia bastante a internação neonatal. No nosso caso específico a criança foi alimentada no terceiro dia pós-operatório, permanecendo internada exclusivamente por causa de problemas ligados à prematuridade.

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Para este procedimento não se exige nenhum equipamento sofisticado, apenas uma equipe dedicada e comprometida em participar e desenvolver a técnica criada pelo Dr. Javier. A equipe de São José do Rio Preto que acompanhou este caso foi composta pelos Doutores Denise Cristina Mós Vaz e Gustavo Henrique de Oliveira no controle pré-natal, Antonio Hélio Oliani e Eloisa Galão, obstetras que realizam a cesárea, os Médicos Anestesistas Benedito Olímpio e Eneida Maria Vieira, sendo a criança operada pelo Dr. Javier Svetliza e Humberto Liedtke Jr., auxiliados por mim. As neonatologistas Doutoras Maria Carmem Lunardi Monteiro de Carvalho e Marciali Gonçalves acompanharam e acompanham a criança no intra e pós-operatório. Além da equipe cirúrgica todos os profissionais não médicos do centro cirúrgico pediátrico do HCM foram treinados previamente para o procedimento.

Este primeiro caso pode ser escolhido para o uso pioneiro da nova proposta inicialmente porque a gestante foi acompanhada desde o segundo mês de gestação, quando houve o diagnóstico precoce da gastrosquise. É importante ressaltar que a determinação do momento ideal para a cesareana materna foi feita pelos doutores Gustavo e Denise, que ao final da gestação mediam semanalmente a alça sentinela no anel herniário, chegando inclusive a adiantar em uma semana a realização do procedimento, em virtude do crescimento do volume da alça sentinela. Também devemos destacar e agradecer a pessoa do Dr. Javier Svetliza, que aceitou de imediato o convite feito para participar do procedimento, inclusive adiantando em uma semana a data prevista, como já foi mencionado.

Dra. Célia Britto, chefe de Cirurgia Pediátrica da Maternidade Prof. José Maria de Magalhães Neto

O Serviço de Cirurgia Neonatal da Maternidade de Referência José Maria de Magalhães Neto, em Salvador, na Bahia, funciona há sete anos. Tratamos muitos recém natos com malformações congênitas, inclusive Gastrosquise.

Recentemente estive no Congresso de Cirurgia Pediátrica de Barranquilla, na Colômbia, onde fiz um curso pré-congresso sobre defeitos da parede abdominal ministrado pelos cirurgiões Dr. Javier Svetliza, de Baia Blanca, na Argentina, e Dr. Cristóvão Abello, de Barranquilla. A técnica pioneira simil-EXIT, apresentada por Dr. Javier para o manejo de Gastrosquise me conquistou pelo seu resultado. A evolução destes pacientes por métodos diferentes cursa na maioria das vezes com um internamento prolongado, podendo chegar a 90 dias em alguns casos e com um início de funcionamento intestinal muitas vezes demorado, principalmente porque as condições das alças intestinais, na maioria, são complicadas, com problemas de inflamação, edema, distensão.

Para o uso da técnica Simil-EXIT o acompanhamento pré-natal faz a diferença, vigiando as condições das alças intestinais, indicando o melhor momento para a interrupção da gestação e identificando doenças associadas. O intestino exteriorizado no líquido amniótico através de um pequeno orifício que pode se reduzir de tamanho no curso final da gestação sofre danos que dificultam o funcionamento precoce no pós-operatório. A possibilidade de minimizar estes danos com a interrupção da gestação num momento ideal, sugerido pelas características ultrassonográficas, ajuda a obter uma redução do conteúdo à cavidade abdominal menos traumática e uma função intestinal razoável em muito menor tempo.

A interrupção da gestação deve ocorrer entre a 34a e 36a semana gestacional, priorizando a maturidade fetal. A gestante é submetida a uma anestesia peridural. Quinze minutos antes do início da cesárea inicia-se uma infusão de um agente analgésico opióide (Remifentanil 0.05 a 0.08 mcg/Kg/min), mantida enquanto houver batimentos no cordão umbilical ou até sua ligadura, ao término da redução das alças. Ao nascer, o bebê é acomodado entre as pernas da mãe, monitorizado e acalentado com uma chupeta com glicose e o cirurgião introduz suavemente as alças exteriorizadas na cavidade abdominal, iniciando com as mais distendidas, enquanto um dos obstetras controla a pulsação do cordão umbilical. O procedimento é geralmente tranquilo. Ao final o cordão umbilical é ligado e o bebê transferido para um berço aquecido para oclusão do defeito e assistência do neonatologista enquanto a equipe obstétrica dá continuidade à cesárea.

A oclusão do defeito pelo Dr. Javier é feita através de sutura sob anestésico local e pelo Dr. Abello apenas através da aproximação dos bordos com um curativo de hidrocoloide. No nosso caso optei pela obliteração por curativo porque é mais rápido e, em minha opinião, menos traumático e com ótimo resultado estético.

O recém-nascido não necessita de anestesia, pois o opióide administrado à mãe passa para o bebê por via placentária, propiciando a sedação necessária ao procedimento sem a necessidade de intubação e suporte ventilatório. No nosso paciente a oximetria se manteve em parâmetros adequados oscilando entre 92 a 95% durante o procedimento e 99% ao final do mesmo, quando o bebê já chorava.

Após o procedimento mãe e filho se encontraram, em momento emocionante. A acompanhante da gestante permaneceu na sala durante todo o procedimento, para uma assistência humanizada, prioridade hoje dentro da nossa instituição.

Quanto aos riscos maternos, são os mesmos de uma cesárea convencional: o tempo necessário para o procedimento cirúrgico do neonato é em média 3 minutos a mais, apenas, e não altera as diretrizes atuais do ministério da saúde, que preconiza um maior tempo para ligadura do cordão umbilical.

Em relação ao custo do procedimento, não vejo onde poderia ser maior que o de uma cesárea convencional. Não há necessidade de equipamentos ou medicações especificas e as equipes obstétrica, cirúrgica neonatal e anestésica são as convencionais. O custo do tratamento do bebê se reduz muito se levarmos em consideração que anteriormente a este manejo a permanência média era de 60 dias em UTI com suporte ventilatório e nutrição parenteral em longo prazo. Complicações dos bebês operados com a técnica do Simil-EXIT podem ocorrer, porém com uma incidência infinitamente menor, como demonstra o Dr. Javier.

Infelizmente nem todos os pacientes têm indicação do procedimento, embora a maioria dos casos de gastrosquise possa utilizá-lo. A divulgação desta nova alternativa terapêutica é importante para alertar os médicos e encaminhar as gestantes com fetos portadores de gastrosquises a uma unidade de referência para serem acompanhadas e ter seus partos devidamente planejados. Infelizmente recebermos frequentemente, ainda, bebês portadores de gastrosquise nascidos sem diagnóstico prévio e sem assistência adequada, que terão uma evolução complicada, muitas vezes com mais de um procedimento cirúrgico.

O nosso primeiro caso foi operado no dia 18 de julho de 2014, na Maternidade de Referencia Prof. José Maria de Magalhães Neto, Unidade pública gerida pela Santa Casa de Misericórdia da Bahia. O bebê teve diagnóstico e acompanhamento ultrassonográfico pré-natal. A mãe foi internada na 33a semana de gestação por apresentar Oligodrâmnia, sendo acompanhada por nossa equipe obstétrica, liderada por Dra. Sabrina Carvalho. A cesárea foi indicada com 34 semanas e 4 dias de gestação, por causa da Oligodramnia. O bebê nasceu pesando 1.650 gramas e iniciou dieta ao seio materno no 5o dia, ainda com sucção muito débil, provavelmente pelo fato de ser um bebê muito pequeno e prematuro.

A equipe que participou do procedimento foi composta por: obstetras Dr. Amado Nizarala, chefe da Obstetrícia, Dra. Sabrina Carvalho; equipe de Anestesia coordenada por Dra. Leticia Bulhões; equipe de Neonatologista comandada por Dr. Samir Nasser; equipe de Cirurgia Pediátrica composta por mim, Celia Britto, coordenadora do serviço, e Dr. João Eugênio Dias. Suporte de enfermagem que se encarregou de providências e organizar todas as nossas solicitações.

Quero deixar claro que o nosso maior foco foi realizar este primeiro procedimento onde eu, Célia Britto, única profissional que conhecia de perto a técnica, tive que explicar e fazer todos os outros profissionais acreditarem que era possível e que conseguiríamos realizar o procedimento numa maternidade pública e que não iria ser necessário nada de fenomenal para isso, apenas garra, fé, harmonia, desejo, sincronia, organização e apoio fundamental da Instituição. Não vou negar que ao final do procedimento tinha mãos tremulas de emoção e presenciar que todo trabalho de preparação e convencimento tinha dado certo. Quero agradecer a todos que acreditaram, apoiaram e em equipe fizeram acontecer. Um agradecimento especial ao Dr. Javier por me ensinar esta técnica e por estar sempre disponível para me tirar dúvidas, respondendo meus questionamentos com simplicidade e carinho.

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