fonte: O Globo

por Ana Lucia Azevedo

Da hora do parto e da dureza das pistas de corrida surge um caminho para enfrentarmos uma indesejada companheira, a dor. Sem convite ou aviso, a dor, não importa aonde, sempre virá um dia nos atormentar. Mas uma série de novos estudos revela que a mente humana é, de fato, forte o suficiente para sublimar certas dores e esquecer completamente de outras. Lidar melhor com a dor ajuda não apenas aqueles que praticam corrida ou qualquer outra atividade física. Mas qualquer pessoa a qualquer momento.

Pergunte a uma mãe de suas memórias mais vívidas do nascimento do filho e a emoção de ver seu bebê pela primeira vez falará mais forte. A excruciante dor do parto, quase sempre, ficará em segundo plano. Converse com um maratonista sobre suas lembranças da prova, e a alegria da chegada e a satisfação do desafio superado serão o assunto. O joelho que ameaçava pifar, os pés que ardiam em bolhas, a coluna que dava sinais de colapso, literais quilômetros de agonia, tudo isso ficará para trás.

Mães e corredores nem precisam pensar muito para esquecer as dores. Sofrem de uma espécie de amnésia seletiva. Um processo cerebral complexo de agradáveis resultados. A dor cai no esquecimento e a satisfação toma seu lugar. Mais do que mera curiosidade, essa espécie de amnésia despertou o interesse de cientistas pela óbvia utilidade em ajudar pessoas acometidas por dores.

Um dos que se debruçou sobre o assunto foi o polonês Przemyslaw Babel. Com colegas do curso de Psicologia da Universidade Jagielloniana, em Cracóvia, ele investigou a amnésia da dor em mães e maratonistas. A escolha aparentemente insólita desses grupos se deve à conhecida capacidade de lembrarem das coisas boas e deixarem as dolorosas de lado em momentos tão cruciais de da vida.

Num artigo publicado este mês na revista científica internacional “Memory”, Babel mostra que quanto mais gratificante o acontecimento, mais facilmente as dores são esquecidas. Na verdade, muitas vezes, são sublimadas durante o próprio evento.

O cérebro realiza a mágica de suplantar a sensação real da dor de uma lesão por algo tão intangível quanto uma emoção. A psicóloga Aline Sardinha, presidente da Associação de Terapias Cognitivas do Rio de Janeiro, explica que a dor é processada em etapas e o cérebro as manipula, ainda que esse processo seja inconsciente. Há o limiar de dor, isto é, o estímulo que gera uma sensação processada como dor. Depois, em frações de segundo, nossa mente analisa de onde ela vem, se é uma ameaça, qual a intensidade.

Cada pessoa tem sua própria percepção. E, quando a dor vai ser guardada como memória, essa sensação é “editada” pelo cérebro, inclusive em nível molecular. O cérebro joga fora parte da informação e compacta o que resta. A dor, quando parte de um evento importante, é ou não armazenada. O cérebro pode simplesmente descartá-la. O resultado é que lembramos dos melhores momentos e do final feliz, mas muito pouco ou quase nada da dureza até chegar até ali.

A mesma coisa acontece em outros momentos da vida, como no sexo. Em momentos em que prazer e dor se misturam, o cérebro muitas vezes guarda ou prioriza apenas a sensação de prazer. E a dor é esquecida ou deixada em segundo plano.

Aline destaca que o importante é o estado de humor no momento da dor. Se o acontecimento for negativo, a dor virá como lembrança vívida.

Há mecanismos moleculares e hormonais que influenciam a sensação de dor. Mulheres que tiveram parto normal ficam com o cérebro cheio de hormônios ligados ao prazer como a oxitocina, observa Aline. Isso ameniza a dor. O mesmo acontece com o sexo. Coisa semelhante mas com substâncias diferentes acontece com a corrida e outras atividades físicas, quando o cérebro é inundado por uma variedade de neurotransmissores dos quais a endorfina é de longe o mais conhecido.

Os pesquisadores poloneses buscam na evolução uma explicação para esses mecanismos cerebrais de sublimação da dor. Nossos ancestrais caçadores-coletores passavam dias a fio correndo atrás da comida — ou para não virar comida — e não tinham tempo ou opção para hesitar perante a dor. Para eles, esquecer e ir em frente era o melhor possível.

O fato é que Babel encontrou uma boa explicação para muita gente correr maratonas e mais maratonas mesmo tendo padecido no inferno durante as provas anteriores e carregar marcas visíveis do sofrimento, como lesões em articulações persistentes. Coisa que acontece também com ciclistas, nadadores e tantos outros desportistas. E, claro, com as mães que tiveram mais filhos. O importante é estar feliz. A dor passa. A alegria fica.