Rio de Janeiro, 30 de junho de 2018

A reportagem de capa da revista Superinteressante esta semana (edição 391) fala sobre “erro médico”. Trata-se de um problema sério que interessa a toda a sociedade, mas nos parece injusto e desnecessário representar a comunidade médica na capa da revista como víboras perigosas, venenosas, prestes a dar o bote sobre alguma vítima inocente. Não é, nem de longe, a verdade, embora seja um estereótipo fácil de apelo popular. Como já disse alguém, para toda questão difícil existe uma resposta fácil – e errada.

A imprensa é fundamental à liberdade democrática. Mas ela tem que ser justa e responsável, em troca de sua enorme projeção, capaz de determinar consequências impactantes na sociedade, embasar e estimular debates e formar opiniões.

Erro em saúde precisa ser discutido com extrema seriedade, sem que haja polarização ou intenção de demonizar o atendimento como algo venal que é indiferente à sorte dos pacientes. O atendimento médico da população é primordial e é fundamental que a relação de confiança entre profissionais e população seja mantida, ainda que também seja igualmente necessário a fiscalização e correção de problemas, a reabilitação e, em casos extremos, o afastamento de profissionais que sejam julgados perigosos no exercício de suas profissões.

A CIPERJ, através deste documento, gostaria de discutir alguns pontos que nos parecem relevantes.

  1.      A expressão “erro médico” não diz respeito a erro “do médico”. O conceito atual define “erro médico” como erro em sistemas de saúde. Que, inclusive, pode acontecer mediante ações de pessoal não médico. Erros administrativos ou medidas administrativas que não são razoáveis e implicam em mecanismos ilógicos ou impraticáveis nos algoritmos de trabalho são capazes de causar erros profissionais.

A indisponibilidade de materiais indispensáveis (e improvisos em situações de emergência), a indisponibilidade de pessoal no número ou com o treinamento necessários e a criação de um ambiente de trabalho insuportável, que leva os profissionais à síndrome de burn-out são diretamente relacionadas à ocorrência de erros. Até hoje as discussões sobre erros em saúde quase nunca consideram esta vertente, que para nós é essencial. Em especial, as tendências atuais de administração baseada em protocolos rígidos e a retirada progressiva de autonomia decisória dos profissionais de saúde têm criado uma situação paradoxal: aqueles que são responsabilizados pelos problemas ou por suas consequências não são as pessoas com gerência sobre as causas. A sobrecarga de trabalho, causada pelos novos estilos de administração de pessoal e economia de gastos impacta diretamente na qualidade dos atendimentos, seja pela sobrecarga direta ou pela necessidade de compensar salários insuficientes com múltipls empregos.

  1.      A idéia de que erros em saúde são frequentes é bastante antiga: este é um problema universal, não um problema do Brasil, conforme reconhecido pelo articulista. Tanto que há uma nova disciplina em saúde, genericamente chamada de Segurança do Paciente (https:http://www20.anvisa.gov.br/segurancadopaciente/). As instituições de saúde e profissionais, portanto, não estão indiferentes a esta questão.

Uma outra questão quase nunca discutida,  aliás, é que, reconhecidamente, o profissional de saúde é a segunda vítima dos erros, especialmente os que levam a consequências trágicas. Erros são inescapáveis como eventualidade, embora possam e devam ser reduzidos a um mínimo. Os profissionais de saúde envolvidos não são, em geral, pessoas malignas, indiferentes ou absolutamente incompetentes, como alguns artigos e programas de TV pretendem insinuar.

Só que muitas vezes negligência acontece por defeito de percepção ligada a cansaço ou sobrecarga de trabalho. O articulista da revista, corretamente, cita isto, ao falar de ambulatórios com atendimentos múltiplos em minutos. O atual clima produtivista obriga a altas em prazos definidos e encaminhamentos rápidos: os pacientes têm que ser atendidos (despachados…) rapidamente, para dar lugar a novos casos e números bacanas para a gestão ou para os administradores de clínicas privadas. Nos preocupa extremamente os cálculos de trabalho em saúde baseados em teorias de engenharia de produção. Não é razoável esperar que o cirurgião que acabou um procedimento de alto risco e nível de concentração simplesmente “emende” num outro para produzir “x” cirurgias em “x” horas. A saturação emocional e intelectual que vem de concentrações e responsabilidades extremas simplesmente não permite este tipo de exigência, adequada a tarefas repetitivas num fordismo pouco humanitário.

Imperícia algumas vezes está ligada a tentativas desesperadas de profissionais não treinados em resolver problemas, geralmente emergenciais ou longamente negligenciados, porque não têm a retaguarda necessária de especialistas, indisponíveis ou não contratados (em geral por medida de economia de custos). A CIPERJ tem, por exemplo, discutido há um tempo extremamente longo a ausência de cirurgiões pediátricos contratados para atendimento emergencial nas maternidades municipais do Rio de Janeiro, sem nenhum sucesso até o momento. Médicos têm empatia pelos doentes sob risco iminente de vida ou sequelas graves ou aguardando infinitamente consultas e procedimentos, médicos querem ajudar, médicos querem resolver. Quando funciona bem está bem, fizemos o nosso trabalho e às vezes até ganhamos um agradecimento sincero dos pacientes (médico é bobo e adora isso). Quando algo funciona mal não é reconhecido o esforço, não são consideradas as condições de contorno.

Objetos “esquecidos” em cirurgia, exemplos típicos de negligência e imperícia usados repetitivamente pela imprensa leiga, especialmente aquela de má qualidade, têm ligação direta com cirurgias em ambientes precários com equipes desfalcadas e estafadas e indisponibilidade de instrumentadores cirúrgicos, o que é amplamente reconhecido na literatura a respeito, que é farta. Esta situação caracteriza tecnicamente negligência. Mas porque e como?

Profissionais de saúde são pessoas. Pessoas, mesmo as mais esforçadas, são suscetíveis a erros e limitações. Nos incomoda bastante que a imprensa frequentemente faça um desenho de algoz contra vítima em suas reportagens a respeito de erros em saúde. Esta não é a verdade: mesmo quando ocorre um erro, o mais das vezes o profissional relacionado está imediatamente mortificado por ele. É extremamente frequente ideação suicida e depressão clínica em cirurgiões envolvidos neste tipo de situação. Suicídios acontecem efetivamente. Vários abandonam a especialidade. Não somos máquinas, homens é que somos. E temos sido agredidos violentamente, de forma sistemática, nos fronts de atendimento do serviço público, eventualmente até de forma física. Compreendemos o stress constante de toda a vida, a luta do dia a dia, o medo das situações de doença, o desespero de não contar com um sistema de saúde público que seja satisfatório que os pacientes vivenciam. Mas bater no médico, atirar a cadeira no atendente de portaria, ameaçar o emergencista com armas de fogo não é a solução. E tudo isso, já suficientemente ruim, só piora com alguns setores de imprensa nos representando como danosos ou indiferentes, transformando a relação médico-paciente de uma relação de confiança numa de medo mútuo. Isso só piora representando médicos como serpentes.

A criação de uma contraposição entre “médicos que erram sistematicamente” e vítimas passivas e inocentes não é razoável e é extremamente perigosa.  A comunidade não vai confiar em quem precisa confiar, os médicos se sentem sob ataque e se fecham em copas. Na esteira deste conflito aberto, a transparência se esvai: se a questão é conduzida como culpa e castigo, erro e processo, erro e indenização, culpa e punição.

  1.      A questão da formação inadequada e desenfreada de novos médicos em escolas indevidamente equipadas, sem hospital universitário e por interesses exclusivamente financeiros, corretamente apontada pelo articulista, tem sido repetitivamente denunciada pelos conselhos médicos há anos, sem que os políticos, responsáveis pelas concessões, nos ouçam. Não temos controle sobre isso, e vai piorar, infelizmente, nos próximos anos. E, esquecido neste artigo, falamos inúmeras vezes, também, da admissão de médicos sem reconhecimento de competência através do programa Mais Médicos. O espírito da coisa não é resolver bem, é colocar gente no posto. O objetivo não é solucionar o problema do atendimento, é dizer que está sendo atendido. É substituir resultados por grandes números de registro, muito impressionantes neste país enorme, que não significam, necessariamente, soluções reais. Com a devida consideração a argumentos com traçado eminentemente político, de parte a parte, que tentam justificar o injustificável ou se motivam por questões de proteção de mercado não é, em nenhuma parte do mundo organizado, admissível que profissionais não ratificados atendam pacientes. Medicina é, e tem que ser, uma profissão seriamente regulamentada. Qualquer pessoa razoável teria medo de ser atendida por alguém que “possivelmente” tem uma formação médica correta.
  2.      Os estudiosos de erros em saúde têm declarado repetitivamente que a solução passa pela consciência e implantação de protocolos de segurança, mas, principalmente, pela relação médico-paciente bem estabelecida e pela transparência nas comunicações. Aqui temos, novamente, a teoria e a prática se confrontando. Novamente, o produtivismo nos prejudica. Não há mais tempo para conversar. Os pacientes têm que ter alta rapidamente. Os médicos são escolhidos através de listas de pessoas pelos usuários de planos de saúde. Os governantes geram atendimentos em saúde através de critérios geográficos de distribuição. A clássica comunicação entre colegas para encaminhar pacientes por critérios de excelência ou experiência profissional se tornou inefetiva no serviço público, porque sistemas reguladores não permitem esta autonomia. Como haver uma relação médico-paciente saudável e uma distribuição de pacientes conforme a capacitação e experiência de profissionais e serviços desta forma? Medicina jamais será possível com qualidade em linhas de produção. Fordismo, novamente, não nos serve. Por difícil e caro que isso possa parecer, atendimento de pacientes depende de uma relação entre indivíduos.
  3.      Existe muita confusão entre erros e complicações de procedimentos. Isso obviamente é fácil de entender. Pessoas sem formação médica e desprovidas de informação completa e isenta desconhecem certos detalhes técnicos das situações e podem avaliar problemas de forma precipitada. Isso vem sendo resolvido através dos consentimentos informados, mas não é possível tornar este entendimento exaustivo, por motivos óbvios: o consentimento informado não transforma alguém em médico instantaneamente, capaz de conhecer todos os detalhes e nuances de alguma situação. Um outro motivo, também plenamente compreensível, é a necessidade de justificar de forma pragmática algo inaceitável do ponto de vista existencial, como a morte de um ente querido, uma lesão permanente ou a quebra de uma expectativa de resultados, muito comum em cirurgias plásticas. Usando um exemplo da própria reportagem, a inserção de uma sonda gástrica pode causar perfuração de faringe ou esôfago e chegar à pleura. Raro, mas possível. Neste caso pode não ser um erro, mas uma complicação de um procedimento. Como ilustração, perfuração do estômago por cateteres é uma das causas mais frequentes de grandes pneumoperitônios em prematuros. Sequelas não são necessariamente resultado de erros. Podem ser efeitos colaterais de tratamentos, complicações.

Existem limites para a Medicina. Mesmo que as pessoas não acreditem mais nisso, quando vêem tantos progressos e bons resultados, existem mortes e sequelas, ainda. Fazemos mais e melhor, mas não podemos tudo (acho que jamais poderemos). Nenhum medicamento é isento de efeitos colaterais. Nenhuma cirurgia pode ser feita sem que o paciente tenha seus órgãos agredidos. A opinião pessoal do autor do texto da Superinteressante sugere uma condenação previa e genérica do médico, que em nada contribui para a melhoria dos serviços de saúde e insufla a população para a judicialização de qualquer problema em saúde.

Muitos dos inquéritos em conselhos profissionais não condenam não por corporativismo, como frequentemente se diz, mas simplesmente porque muitos danos sofridos pelos pacientes são complicações, não consequências de erro. Se forem consultados os arquivos dos conselhos profissionais, há justificativas formais para todos os arquivamentos ou resultados favoráveis. Não é verdade, como é dito no início da reportagem, que fraudes, corporativismo desonesto ou omissões propositais justifiquem a resolução da maioria destes conflitos.

Erros em saúde devem ser discutidos. Sem sensacionalismo, mesmo admitindo que é um tema muito sensível, que fala muito às emoções. Mesmo admitindo que erro em saúde, por implicar consequências imediatas sobre a vida, é extremamente impactante, até mais do que os erros de construções de pontes e ciclovias, que também matam gente, mas são discutidos de forma muito menos personalista. Erros de engenharia não têm rosto, erros em saúde têm o rosto de alguém, em geral um médico. Não podemos, não devemos, cair na vala comum de discutir erros em saúde como profissionais contra pacientes. Os profissionais de saúde não são os inimigos a ser combatidos.

Diretoria da CIPERJ