fonte: MedScape

Uma busca no site Jusbrasil pelas palavras-chave “cobrança plantão médico” impressiona: mais de 10 mil resultados. De um lado, diferentes instituições, como cooperativas, organizações sociais (OS), empresas de saúde e mesmo prefeituras ou outros entes públicos; e do outro, geralmente médicos com uma queixa comum: a não remuneração após plantões médicos ─ um calote.

Entre os vários processos registrados no site de informações jurídicas, há o de um médico mineiro contratado por uma empresa de saúde via credenciamento. O profissional afirma que realizou oito plantões, um deles na noite de Natal, e não foi remunerado por nenhuma das 120 horas de trabalho.

Além do “calote clássico”, no qual o contratante simplesmente não paga a pessoa contratada após a prestação do serviço, há também outra “modalidade” de calote aparentemente comum no contexto dos plantões médicos. O Medscape ouviu o relato de um médico paulista (que será chamado de Dr. Manoel para preservar a sua identidade) sobre o tempo em que era contratado por OS e atendia em unidades de pronto atendimento, as UPAs. Dr. Manoel conta que, ao final dos plantões, muitas vezes não havia colegas para rendê-lo e, como deixar uma unidade de saúde sem médico caracteriza abandono de plantão, fere o Código de Ética Médica e pode acarretar penalidades civil, criminal e ética, ele permanecia. Como resultado, ele conta que em várias ocasiões acabou dando plantões de 48 horas ─ o que ultrapassa o limite preconizado pelos conselhos de medicina, de 24 horas — sem ser remunerado pelas horas extras.

O Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro (Cremerj) recebe cerca uma denúncia de calote por mês. E essas queixas costumam aumentar no final do ano. Segundo o Dr. Yuri Salles, diretor do Cremerj, isto ocorre porque é o período em que as prefeituras fazem seus balanços financeiros e, ao identificar déficits orçamentários, algumas deixam de pagar os profissionais. Também é quando os contratos de empresas privadas com entes públicos geralmente são encerrados e, com isso, os calotes aumentam.

Flexibilização da legislação: médicos mais vulneráveis

“A forma como os médicos são contratados hoje é muito frágil. Atualmente, não temos mais médicos contratados via Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) ou por novos concursos [públicos]”, explicou o Dr. Yuri à reportagem, destacando que, quando há um contrato de trabalho, costuma ser firmado com Pessoa Jurídica e não garante estabilidade. Em geral, o setor público, por exemplo, contrata uma empresa privada que, por sua vez, contrata a mão de obra médica. Muitas vezes, os médicos tornam-se sócios dessa empresa. Se, por um lado, esse tipo de vínculo está associado a menor pagamento de impostos, por outro expõe o médico a possíveis problemas jurídicos, tornando-o, por exemplo, apto a responder judicialmente pela empresa em caso de irregularidades. Outro entrave é a falta de direitos trabalhistas, como 13o salário, licença-maternidade e auxílio-doença. E, quando a remuneração é feita por participação nos lucros, também não há recolhimento do INSS.

A precariedade de vínculos trabalhistas também contribui para a maior rotatividade da mão de obra médica e, por consequência, para a falta de investimento em capacitação e aperfeiçoamento do profissional, uma vez que o empregador dificilmente investirá em um médico que não permanecerá por muito tempo na empresa.

De acordo com o Dr. Raul Canal, presidente da Sociedade Brasileira de Direito Médico e Bioética (Anadem), em princípio o trabalho nos plantões não tem habitualidade, e não há vinculação hierárquica nem subordinação dos profissionais, portanto a prática não caracteriza vínculo trabalhista. Este vínculo só se configura quando os plantões são habituais, ou seja, quando são realizados três ou mais plantões por semana para o mesmo contratante. “A partir de três plantões [semanais], embora seja um contrato de prestação de serviço, [o vínculo] pode passar para a esfera trabalhista e não para a esfera civil. Toda vez que forem dois plantões ou um plantão por semana, o vínculo é civil, não é trabalhista”, esclareceu o advogado em entrevista ao Medscape.

Segundo o Dr. Raul, para se precaver, o médico deve assinar um contrato e, caso o pagamento não seja realizado, o profissional pode então entrar com uma ação de cobrança. Se a dívida não ultrapassar 40 salários mínimos, a ação pode ser feita no Juizado Especial Cível (antigo Juizado de Pequenas Causas).

Outra providência possível, segundo o Dr. Raul, é fazer denúncias para a secretaria de saúde do município ou do estado, ou seja, do órgão que contratou a cooperativa ou a organização social que “deu o calote”.

Os profissionais também podem fazer denúncias aos sindicatos dos médicos, para que eles possam agir junto à secretaria de saúde, à prefeitura ou ao governo estadual. Segundo o advogado, na ausência de pagamento dos honorários médicos, o próprio ente público contratante da OS ou da cooperativa também pode ser responsabilizado, então frequentemente os contratos com essas empresas contêm uma cláusula penal com determinação de multa, e até de rescisão contratual, em caso de não cumprimento dos termos acordados.

Segundo o Dr. Yuri, de acordo com a legislação, as demandas de cunho trabalhista dos médicos não competem aos conselhos de medicina; mas dada a carência de sindicatos médicos em muitos locais, os conselhos têm absorvido essa demanda. “Este tipo de calote acaba impactando a assistência e a função do Cremerj, que é, acima de tudo, garantir o bom exercício da medicina justamente para preservar a assistência à população”, disse, acrescentando que a gestão atual do conselho, iniciada em 2018, tem adotado diferentes iniciativas.

O médico afirmou que, quando as denúncias de calote chegam ao Cremerj, a entidade intervém para ajudar os profissionais, tanto com apoio jurídico como exercendo pressão política sobre os gestores para que regularizem os pagamentos. “Já tivemos resultados positivos, inclusive na pandemia de covid-19. Havia colegas que não estavam recebendo honorários referentes a plantões [na época de maior demanda por causa] da covid-19. Conseguimos ajudá-los a receber”, contou.

O Cremerj vem atuando junto à gestão pública, incluindo as esferas executiva e legislativa. Segundo o Dr. Yuri, a falta de remuneração estável e previsível e de vínculos formais de trabalho é um problema em todo o Brasil e contribui para a desigualdade na distribuição dos médicos no país. “Uma grande demanda que temos em nível federal é de uma carreira de Estado para os médicos, tal como existe para os militares, para o Ministério Público e para o [Poder] Judiciário”, disse. Para ele, a medida traria perspectiva de carreira em longo prazo, o que incentivaria os médicos a irem para cidades do interior do país.