fonte: Folha de SP
Um estudo realizado pelo Research Center, núcleo de pesquisa do grupo de educação médica Afya, mostra que 69,4% dos médicos no Brasil já apresentaram sinais de depressão durante a vida. A metade tem a condição atualmente, sendo que 26,8% têm um diagnóstico e 23,4% manifestam sintomas, mas não fazem acompanhamento.
A pesquisa “Saúde Mental do Médico 2022” foi feita com 3.489 médicos formados de diferentes especialidades e de todas as regiões do país. Os profissionais responderam a um questionário online entre os dias 30 de maio e 17 de julho deste ano. A amostra apresenta nível de confiança de 95% com margem de erro entre 1,66 e 1,76 pontos percentuais.
Os entrevistados apontaram que falta de tempo e de motivação, além do medo do impacto na rotina de atuação profissional, são os principais motivos para não buscarem ajuda ou tratamento para a depressão. O estudo também avaliou que para 34% daqueles que têm um diagnóstico atualmente, o transtorno surgiu no último ano, o que reforça o impacto da pandemia da Covid-19 na saúde mental dos profissionais.
O levantamento também revelou que a ansiedade é ainda mais comum, já que 79,6% apresentaram sintomas do transtorno. Destes, 35,6% possuem um diagnóstico atual da patologia e, para 32,4% dos diagnósticos fechados, a doença surgiu no último ano.
Outro cenário preocupante é o burnout, caracterizado pelo esgotamento físico e mental intenso. Dos entrevistados, 62% já apresentaram sinais e, destes, 36% ainda não buscaram ajuda. Além disso, 67% dos diagnosticados indicam que a síndrome surgiu no último ano, mostrando um possível reflexo da pandemia. Excesso de horas trabalhadas, organização financeira e falta de realização profissional aparecem como os principais contribuintes.
O nível de estresse ocupacional dos médicos brasileiros calculado na pesquisa também é alarmante e está acima do de profissionais de outros países. Para avaliar o contexto, foi utilizada a escala EPS-10, validada em língua portuguesa, que consiste em dez perguntas de frequência de episódios de estresse. A pontuação média obtida na amostra foi de 23,4. Nos Países Baixos, por exemplo, foi encontrada uma percepção de estresse pela escala com média de escore de 17,9 entre os médicos, em 2018. Na Arábia Saudita, entre 303 médicos avaliados, a média de pontuação pela escala foi de 18,07, em 2017.
Quando perguntados sobre os principais motivos do estresse atual, o descontentamento com o sistema de saúde, condições de trabalho e a elevada demanda foram indicados por mais de 50% dos entrevistados.
“A saúde mental do médico foi tema recorrente nos últimos dois anos, especialmente por conta da pandemia. Há ainda um reflexo deste período e, atualmente, já com a situação mais branda da Covid-19, os dados desta pesquisa mostram que essa deve ser uma preocupação constante e não apenas pontual. Trata-se de um imenso problema ocupacional há muito negligenciado e que precisa ser visto como prioridade por todos nós”, afirma Eduardo Moura, médico, co-fundador da PEBMED e diretor de pesquisa do Research Center.
Além disso, a pesquisa também aponta a relevância do apoio do empregador nos episódios de adoecimento mental. Aproximadamente 75% dos médicos declaram que a instituição em que trabalham não oferece suporte em caso de psicoadoecimento ou sofrimento emocional.
Quanto ao número de horas contínuas de trabalho, quase metade dos médicos (47,4%) discordam da afirmativa de que o local onde atuam não permite o trabalho por mais de 24 horas ininterruptas. Em relação ao treinamento técnico ofertado, 61% discordam de que a instituição onde trabalham oferece treinamento técnico suficiente para a equipe.
O estudo ouviu profissionais de diferentes graus de formação: 59% dos médicos eram especialistas, 29,5%, generalistas e 11,5%, em fase de especialização. Dos entrevistados, 41,6% trabalham em emergências ou unidades de pronto atendimento. Foi observado também que os médicos trabalham em média 52,5 horas por semana, levando em consideração todos os ambientes de trabalho. A maior parte (75,9%) relatou trabalhar atualmente até 60 horas semanais.
Com relação à rotina adotada pelos médicos, somente 35% conseguem manter regularmente um sono reparador. Há uma clara tendência de maior frequência de sono bom quanto mais experiente é o médico, quanto menos horas trabalhadas na semana e quando trabalham no seu próprio negócio.
Dos entrevistados, apenas 33,3% dos participantes relataram ter tido frequentemente ou sempre momentos de lazer nas duas últimas semanas, e 70,7 % não praticam regularmente uma atividade física.
Para Marcelo Gobbo Jr., médico de família e mestrando em psicologia, é muito comum que profissionais de saúde deixem seu autocuidado em segundo plano. “Em relação à saúde mental, temos questões individuais e institucionais muito relevantes para serem pensadas. É necessário que as pessoas que trabalham com a medicina equilibrem suas medidas de autocuidado, ampliando a prática de atividade física, manejo do estresse, planejamento financeiro, fortalecimento das suas relações de sentido com ações de voluntariado, por exemplo”, diz.
“Também é necessário que as instituições públicas e privadas criem mecanismos de suporte para esses profissionais, com limitação de carga horária excessiva, suporte para eventos adversos, lideranças que criem senso de pertencimento e suporte dentro dos próprios serviços de saúde”, observa o médico.
Gobbo Jr. também ressalta a participação das mulheres na medicina. “A maior parte da força de trabalho médica no Brasil é feminina. Um dos maiores pontos associados ao burnout é o equilíbrio entre vida profissional e pessoal. Não há como não pensar que regimes de contratação que não pensem nas necessidades femininas, uma jornada de trabalho longa e uma rotina pessoal de sobrecarga com cuidados com filhos, por exemplo, ou cuidados de outros familiares (uma vez que a maior parte das mulheres brasileiras são principais cuidadoras de algum familiar) não seja também um foco de atenção”, afirma.
“A constante tensão em equilibrar tantas jornadas com muita necessidade de atenção é um fator que contribui para o adoecimento, e com vínculos profissionais cada vez mais pautados em autonomia e ausência de direitos trabalhistas, impacta diretamente a qualidade de vida e a saúde mental dessas profissionais de saúde que são as principais pessoas responsáveis na linha de frente pelo cuidado de saúde da população brasileira”, conclui.
O consumo de alimentos frescos e menos industrializados já se mostra uma situação mais frequente na rotina do médico —43,6% dizem consumir frequentemente ou sempre. Além disso, as férias são um benefício que o profissional, em sua maioria, consegue manter. Porém, para quase dois terços dos médicos (64,4%), o período de descanso não passa de duas semanas.
Uma grande parte dos médicos são neutros em avaliar sua própria qualidade de vida: 4,7% consideram muito ruim, 14,4% ruim, 44% neutra, 30% boa e 6,9% muito boa. Sobre satisfação profissional, há um posicionamento mais neutro também: 16% nada satisfeito, 16,5% pouco satisfeito, 27% neutro, 22% satisfeito e 18,3% muito satisfeito. Quase metade (45,9%) dos entrevistados declararam que a satisfação com a profissão médica diminuiu no último ano.
“Percebemos que a população médica do Brasil possui hábitos de vida que potencializam o estresse e o adoecimento mental, ao mesmo tempo em que as condições de trabalho são preocupantes e impactam na vida e no desempenho destes indivíduos. Medidas de controle de jornada, equilíbrio de remuneração, capacitação profissional corporativa, construção de redes de apoio e suporte são exemplos de medidas institucionais protetoras em relação à saúde mental da força de trabalho médica do Brasil”, reforça Moura.