fonte: Folha de SP

Instituições de ensino superior aguardam uma decisão do ministro Gilmar Mendes, do STF (Supremo Tribunal Federal), sobre o futuro dos cursos de medicina no país. Foram apresentadas à corte duas ações opostas, e a sentença definirá quais critérios devem ser seguidos na abertura de novas graduações.

As ações foram ajuizadas em junho de 2022, enquanto ainda estava em vigor a moratória de cinco anos imposta pelo governo de Michel Temer (MDB) como uma forma de frear a criação de turmas. O resultado, porém, foi outro.

Segundo o CFM (Conselho Federal de Medicina), as instituições de ensino abriram 75 cursos de medicina durante o bloqueio —cinco públicos (três estaduais e dois federais) e 70 particulares, totalizando mais de 6.000 vagas. Parte das novas turmas já estava prevista no último edital publicado antes da moratória, que autorizava 26 aberturas, e as demais foram autorizadas por liminares.

O congelamento oficial acabou no início deste mês, e o MEC (Ministério da Educação) publicou uma nova portaria. O documento indica a necessidade de “equipamentos públicos adequados, suficientes e de qualidade” ou o estabelecimento de parcerias com hospitais para viabilizar a parte prática do curso. Também prevê novos chamamentos públicos em até três meses.

Mas as faculdades entendem que a norma não terá efeito prático enquanto o assunto não for avaliado no tribunal.

A primeira ação no STF foi apresentada pela Anup (Associação Nacional das Universidades Particulares). A entidade pede que seja declarada constitucional a exigência de um chamamento público para abertura de novos cursos particulares de medicina.

Dias depois, o Crub (Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras), que congrega 130 instituições de ensino públicas, particulares e comunitárias, também recorreu ao Supremo, porém para solicitar a suspensão da necessidade de chamamento. Para a organização, as autorizações de novos cursos de medicina devem seguir o mesmo trâmite das demais graduações.

Apesar dos pedidos antagônicos, há um ponto em comum no posicionamento das entidades de classe. Todos citam a mercantilização dos cursos de medicina –que desde 2010 quase dobraram, passando de 208 para 389– e afirmam estar preocupados com a formação dos futuros médicos. Atualmente, o país forma por ano aproximadamente 40,3 mil profissionais, segundo o CFM (Conselho Federal de Medicina).

O QUE DIZ A LEI?

O chamamento público obrigatório está estipulado na Lei 12.871/2013, que instituiu o programa Mais Médicos. Pela norma, compete ao MEC indicar quais municípios podem receber novos cursos de medicina e escolher entre as instituições de ensino interessadas.

Na época, o governo federal justificou que o processo seria uma forma de melhorar a distribuição de profissionais no país, mas há dúvidas de que isso tenha sido alcançado.

De acordo com o CFM, o país possui 564.385 médicos, o que corresponde a uma taxa nacional de 2,65 profissionais por mil habitantes. No estado de São Paulo, essa proporção é maior, de 3,70 e no Rio de Janeiro chega a 4,07. Já no Maranhão a taxa é de 1,27 e, no Amazonas, 1,44.

O Crub questiona também a legalidade da exigência. Segundo o advogado da entidade, Dyogo Patriota, a regra fere a autonomia universitária e a livre concorrência e beneficia os gigantes da educação. “O que o MEC fez, na realidade, foi mercantilizar os cursos, e os grandes grupos souberam aproveitar”, afirma.

“O primeiro edital [do Mais Médicos] foi voltado à região mais rica e com mais médicos no Brasil, com preponderância de cidades no Sudeste e no Sul e com muitas cidades da região metropolitana de grandes capitais ou polos econômicos, o que é contrário aos objetivos de distribuição equitativa de médicos pelo país. O segundo, embora tenha finalmente focado nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, foi amplamente vencido pelos grandes grupos empresariais educacionais”, alega o Crub na petição apresentada ao STF.

Por outro lado, a presidente da Anup, Elizabeth Guedes, afirma que o chamamento é uma forma de garantir a qualidade dos novos cursos de medicina, uma vez que estipula critérios além dos estabelecidos no Sinaes (Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior).

A lei prevê, por exemplo, infraestrutura adequada, incluindo bibliotecas, laboratórios e ambulatórios; acesso a serviços de saúde, clínicas ou hospitais com as especialidades básicas; e corpo docente e técnico com capacidade para desenvolver pesquisa.

O chamamento público considera ainda, na avaliação das entidades, aspectos econômicos que favorecem empresas de capital aberto, como as gigantes representadas pela Anup, em detrimento do patrimônio líquido, como defendem as instituições de médio e pequeno porte do Crub.

Para Guedes, há uma corrida pela abertura de turmas de medicina porque são mais rentáveis —as mensalidades ultrapassam R$ 9.000— e têm menores taxas de desistência e inadimplência.

“As liminares geraram um mercado secundário”, critica. Ela coloca que os requisitos por liminar ou edital são desiguais e vê como natural o chamamento público beneficiar as empresas com mais recursos financeiros.

QUAL A OPINIÃO DOS MÉDICOS E DOS ESTUDANTES?

A AMB (Associação Médica Brasileira) e o CFM entendem não ser necessário abrir mais nenhum curso de medicina no país. Para as entidades, o Brasil tem médicos em quantidade suficiente e é ilusório crer que a abertura de vagas, por si, vai melhorar a distribuição dos profissionais.

“Nosso problema hoje não diz respeito ao número, mas sim à qualificação e à distribuição”, afirma César Fernandes, presidente da AMB. Ele ressalta que é fundamental estudantes de medicina terem contato com pacientes tanto em unidades básicas de saúde quanto em hospitais de média e alta complexidade, mas isso não vem sendo observado.

Os órgãos defendem como parâmetros ideais a oferta de cinco leitos públicos de internação hospitalar para cada aluno no município sede do curso; acompanhamento de cada equipe de Saúde da Família por no máximo três alunos de graduação e a existência de um hospital de ensino.

Porém 70% dos municípios com cursos de medicina não têm hospital de ensino; 51% não têm leitos suficientes no SUS e 28% não têm um número satisfatório de equipes de Saúde da Família, segundo o CFM.

A falta de estrutura para os cursos em funcionamento e a não exigência desses critérios de forma explícita na regulamentação atual preocupam também os estudantes de medicina.

“Não somos contrários à abertura de escolas. Somos contrários à abertura indiscriminada, em locais sem leitos, sem hospital para que os alunos possam atender pacientes”, diz Rafael Lobo, presidente da Aemed-BR (Associação dos Estudantes de Medicina do Brasil).

QUAL O POSICIONAMENTO DO GOVERNO FEDERAL?

A secretária de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, Isabela Pinto, afirma que tanto o Ministério da Saúde quanto o MEC têm mantido o diálogo com as entidades médicas e que a intenção é reunir esforços para avaliar a questão com cuidado. Recentemente, o ministro Camilo Santana e o vice-presidente Geraldo Alckmin tiveram reuniões com os presidentes do CFM e da AMB.

Segundo a secretária, o governo está preocupado tanto com a melhor distribuição dos médicos quanto com a formação de qualidade dos estudantes, e pretende adequar a força de trabalho ao perfil demográfico e fortalecer as políticas de regulação.

Questionada se os novos chamamentos trarão os três critérios defendidos por médicos e estudantes, Isabela Pinto diz que as condições mínimas para a parte prática da graduação ainda estão em estudo. “Estamos checando os números a partir dos estudos, das evidências, para então explicitar todos esses critérios para abertura dos cursos.”

O MEC também defende que a retomada dos chamamentos visa a diminuir a carência de médicos em algumas regiões. “Essa reordenação da oferta de vagas de graduação em Medicina, por meio de medidas indutoras implementadas por parte do Estado, é uma política que pretende alterar a realidade brasileira a médio e longo prazo”, aponta.

O ministério pontua ainda que, embora o objetivo da moratória fosse promover maior controle sobre a formação médica, a medida acabou gerando judicialização dos processos, e a Portaria nº 650 vem restabelecer as diretrizes.

“Os critérios para os chamamentos públicos estão sendo elaborados no âmbito da Comissão Interministerial de Gestão da Educação na Saúde e serão publicados em até 120 dias a partir da publicação da Portaria nº 650, ou seja, no início de agosto. Os primeiros editais de chamamento selecionarão municípios