fonte: Folha de SP
Em uma década, os planos de saúde ressarciram menos da metade dos valores referentes a atendimentos de seus beneficiários no SUS.
Entre janeiro de 2012 e março de 2022, a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) identificou um volume de R$ 10,3 bilhões, entre internações e procedimentos ambulatoriais.
Desse montante, só R$ 4,18 bilhões foram efetivamente pagos nesse período e outros R$ 819 milhões estavam parcelados. Há valores ainda pendentes (R$ 1,07 bilhão), outros suspensos judicialmente (R$ 941 milhões) ou que ainda estão em análise no âmbito administrativo (R$ 173,42 milhões).
Segundo a ANS, nem todos os valores originalmente identificados são aptos à cobrança, uma vez que é preciso esgotar as instâncias administrativas de contestação.
Por exemplo: dos R$ 10,3 bilhões identificados, R$ 1,98 bilhão foi abatido da conta já logo no início do processo. As operadoras contestaram administrativamente os atendimentos, e a argumentação foi aceita pela agência.
Os dados da ANS mostram que existe uma cascata de recursos e contestações, que, em última instância, retardam, reduzem ou cancelam as cobranças.
Em nota, a ANS diz que as cobranças suspensas são de casos em que o beneficiário estava em períodos de carência, ou que tinha uma doença preexistente, ou que o atendimento foi fora da área de abrangência geográfica do plano, entre outros motivos. Nessas situações, as operadoras estão desobrigadas a ressarcir o SUS.
Os planos também podem pleitear a redução do valor notificado, argumentando, por exemplo, que o contrato do beneficiário tem cláusula de coparticipação.
O ressarcimento ao SUS está previsto na lei 9.656, de 1998. A cobrança ocorre todas as vezes em que a ANS, por meio de cruzamento de dados do Ministério da Saúde, verifica que um paciente foi atendido na rede pública para um serviço que poderia obter na rede suplementar –ou seja, dentro do que foi contratado com o seu plano de saúde.
Quando pagos, esses recursos vão para o FNS (Fundo Nacional de Saúde), uma conta com verbas destinadas aos governos federal, estadual e municipal para investimentos no SUS.
Segundo a médica Ligia Bahia, professora da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e especialista em saúde pública, o ressarcimento foi idealizado como forma de evitar que as operadoras ganhem duplamente: com mensalidades pagas do usuário e também por não gastar com o atendimento que ele faz no SUS.
“Mas isso nunca aconteceu. O SUS se tornou uma resseguradora dos planos. O plano não resolve, e a pessoa vai para o SUS. Para mudar isso, tinha que ser ‘bateu, pagou’. E pagou no valor que as empresas pagam [aos seus prestadores privados]”, diz.
O valor pago pelos planos pela internação no SUS chega a ser quase quatro vezes inferior ao que eles pagam aos hospitais privados —R$ 3.300 contra R$ 11,9 mil, em valores de 2021.
“É uma história de calote de 25 anos. Vai impugnando, vai indeferindo, vai judicializando”, diz Mario Scheffer, professor do departamento de medicina preventiva da USP e coordenador do Grupo de Estudos sobre Planos de Saúde.
Segundo ele, é crescente o ônus do SUS com beneficiários de planos de saúde. Estudo do Sindhosp (sindicato paulista os hospitais, clínicas e laboratórios) mostrou que 34% dos moradores do estado de São Paulo buscam hospitais públicos para internação, outros 28% usam o SUS para consultas médicas e 27%, para exames laboratoriais.
“Há sinais claros de uma piora da rede dos planos, com aumento de reclamações na ANS e de ações judiciais. São negações de cobertura, redes insuficientes, que empurram o usuário para o SUS”, diz.
Em 2018, o STF (Supremo Tribunal Federal) pacificou a questão sobre a constitucionalidade do ressarcimento ao SUS e do procedimento administrativo da ANS para cobrá-lo, mas ainda hoje há ações judiciais movidas por operadoras de saúde contestando isso e buscando a suspensão da cobrança.
No final do mês passado, por exemplo, a AGU (Advocacia-Geral da União) obteve uma decisão favorável na Justiça contra uma cooperativa de saúde que questionava a obrigação de ressarcir as despesas que o SUS teve com tratamentos de Covid-19 de seus beneficiários.
“Os planos ganham caixa com esses questionamentos e têm uma redução das despesas naquele momento. É uma estratégia corporativa pensada”, diz o pesquisador José Antonio Sestelo, do grupo de pesquisa e documentação sobre o empresariamento da saúde da UFRJ.
De acordo com ele, os casos de ressarcimento nem de longe correspondem à realidade dos atendimentos de beneficiários no SUS. “Muitos nem chegam à ANS porque o hospital que fez o atendimento não registrou se o paciente tinha ou não plano”, diz Setelo.
Atualmente, o maior volume de valores cobrados pela ANS aos planos são de internações para partos e transplantes. No âmbito ambulatorial, os procedimentos de hemodiálise lideram. Consultas e exames costumam ficar fora da conta.
Em nota, a ANS diz que só é possível pedir o ressarcimento de exames e consultas se houver identificação pessoal do paciente. “A grande maioria desses atendimentos são registrados por produção e não por paciente.”
Para Sestello, o período entre a notificação do atendimento e o pagamento é muito longo. “A burocracia da ANS não dá conta de processar de forma ágil. É um sistema muito precário. Dá impressão de uma falta de vontade política para melhorar.”
Questionado, o Ministério da Saúde disse que trabalha no “desenvolvimento de novas bases para o diálogo com o setor sobre alternativas para o ressarcimento por parte dos planos de saúde e quitação dessa dívida com o SUS”.
As operadoras também criticam o modelo de cobrança da ANS. “A conta chega hoje, mas é referente a um atendimento de dois anos atrás. Chega um CPF e uma conta. Imagina um hospital privado me mandando a conta desse jeito? É um modelo ruim, que não funciona”, diz Marcos Novais, superintendente da Abramge (Associação Brasileira de Planos de Saúde).
Segundo ele, os contratos coletivos chegam a girar 50% ao ano, ou seja, metade da massa de beneficiários de um plano pode mudar em um único ano. “Fazem portabilidade, mudam de contratos. E daqui a dois anos vai chegar a conta desse beneficiário que já nem está mais comigo?”
Novais afirma que outro questionamento frequente que as operadoras fazem na Justiça é sobre o cálculo de cobrança da ANS. A agência usa como base a tabela do SUS e multiplica o valor por 1,5. “Tem uma discussão muito grande de onde surgiu esse cálculo. Por que esses 50%? [a mais na fatura]. Por que não 45%?”
Na sua opinião, é preciso uma gestão melhor das informações de beneficiários de planos que buscam o SUS. “Por que não avisar a operadora logo que isso acontece para que seja buscado um leito na rede privada?”
Em nota, a Fenasaúde (Federação Nacional de Saúde Suplementar) diz que cumpre integralmente o rito de ressarcimento ao SUS estalecido pela lei 9656/1998 e confirmado pelo STF.
A ANS contesta as críticas sobre a demora da cobrança. Diz que, embora o tempo máximo de conclusão dos processos administrativos possa alcançar dois anos, a cobrança não se dá exclusivamente apenas ao fim desse tempo.
Segundo a agência, há três possíveis momentos de cobrança anteriores, que variam entre 45 dias e 1 ano após o lançamento do ABI (Aviso de Beneficiários Identificados).
Também refuta a informação dos planos de que a conta chega para eles apenas com o CPF do paciente. “São enviados o código de beneficiário da operadora, a CCO (código de controle operacional), a data de nascimento, campos que permitem a ligação com cadastro dos beneficiários e seu espelho na ANS, para a plena identificação dos beneficiários.”