fonte: Saúde Business
“Registro Eletrônico de Saúde! Público, único e nacional? Duvido!”. O descrédito soa comum quando se noticia outra vez que um país se lança na empreitada de criar um ‘prontuário eletrônico único’, sonho de meio século daqueles que desenvolvem, estudam e lutam pelos ‘sistemas de informação na saúde’. Dessa vez é a França que peleja arduamente para implantar o seu “prontuário único do paciente”, que além de ser digital e público, será “acessível a comunidade médica e ao próprio paciente”. Depois do fracassado “Dossier Médical Partagé (DMP)”, um programa que pretendia reunir os dados médicos do paciente numa base única, a França não desistiu e relançou o projeto com novo nome e correções de rumo. Trata-se da plataforma “Mon Espace Santé”, que vem com mudanças de forma e conteúdo tentando corrigir as falhas do projeto anterior.
O governo projetava que o DMP seria adotado por 40 milhões de usuários até 2023, mas no final de 2020 não chegavam a 10 milhões, sendo que muito pacientes criaram o registro sem nunca o reabrir. Assim, os franceses gradualmente se despedem do DMP para descobrir a nova plataforma, que está sendo testada desde 1º. de julho de 2021 em três localidades: Haute-Garonne, Somme e Loire-Atlantique. Nessa fase de testes, perto de 4 milhões de pessoas utilizarão o novo registro médico, sendo as três unidades-piloto escolhidas devido a diversidade de suas populações (rurais e urbanas). No início de julho os usuários passaram a receber um email (ou carta) referendando a criação da plataforma e informando um código individual (provisório e confidencial). Com isso eles podem acessar o site monespacesante.fr para ativar o registro, ou se opor a sua abertura automática, que ocorrerá caso não haja uma negativa em 40 dias. Ao final desse colossal “beta-teste” o Ministério da Saúde lançará um grande “tour-de-france” de webinars para apresentar a plataforma e mobilizar o país.
Parece simples, mas é de uma extraordinária complexidade. Convencer uma população de que o Estado não consegue mais prestar um serviço coletivo eficiente sem a cooperação individual de cada cidadão é uma parte do desafio. A outra é induzir, instigar e persuadir os profissionais de saúde a compartilhar os dados de seus pacientes. Essas resistências perseguem a implantação nacional de um Registro Eletrônico de Saúde (RES) em quase todos os países republicanos. Mais do que ciosos de nossas ‘informações clínicas’, somos, em geral, ignorantes sobre a importância e a necessidade de compartilhar esses dados com a rede assistencial. O Prontuário Eletrônico Público é um dos maiores desafios sanitários deste século, sendo que a pandemia só confirmou isso. Milhares de vidas teriam sido salvas se houvesse um mínimo de medical-data-shared para, por exemplo, a identificação antecipada de comorbidades. Conhecido globalmente como EHR (Electronic Health Record), trata-se de um registro eletrônico longitudinal contendo o histórico clínico do paciente, que é gerado e colecionado em todos os encontros do paciente com a cadeia de assistência médica. Os primeiros esforços para sua criação apareceram nas décadas de 1960 e 1970, quando centros médicos universitários desenvolveram seus próprios sistemas. A partir da década de 1980, percebeu-se que a padronização e o compartilhamento dos registros clínicos seria uma potente forma de gerar efetividade e escala em toda indústria de serviços médicos. Nesse sentido, cada país passou a “desejar” o seu próprio EHR, sendo o Reino Unido um dos pioneiros em tentar instrumentalizar uma “plataforma única, pública e nacional de dados em saúde”, que depois de inúmeras tentativas (também fracassadas) deixou de ser um ‘projeto-de-antecipação-do-futuro’ para ser somente um projeto para o futuro.
Sob a ótica daqueles tempos, um RES nacional era sem dúvida um “desafio de sísifo”. Implementar um histórico eletrônico nacional com as ‘condições informáticas’ daquela época era um brutal desafio. Nos tempos atuais, no entanto, as plataformas de interoperabilidade, blockchain e big data, sem falar nos crescentes recursos de conectividade, já permitem alcançar esse patamar. A biosfera digital exponenciou seus recursos e os EHRs passaram a ser factíveis para os Sistemas Públicos de Saúde. Mas passado meio século, o problema é cada vez menos tecnológico e cada vez mais de adesão e adoção. O governo francês e o CNAM (Santé et la Caisse nationale d’assurance maladie), o plano de saúde obrigatório do país, sabem disso e refinaram o “Mon Espace Santé” para ser uma plataforma capaz de alcançar 69 milhões de franceses. O início da implementação nacional deverá ocorrer a partir de janeiro de 2022, após o término da atual fase de testes. “Teremos sucesso no espaço digital da saúde se todos se envolverem e fizerem a sua parte: (1) os poderes públicos garantem o enquadramento ético, a regulamentação e uma base tecnológica segura; (2) os fabricantes terão que atualizar seus softwares para serem compatíveis, ergonômicos e interoperáveis; (3) os profissionais e estabelecimentos de saúde devem inserir seus dados, compartilhando as informações clínicas com médicos e pacientes; e, claro, (3) os próprios cidadãos deve se apropriar do espaço Mon Espace Santé”, explicou Dominique Pon, gerente digital do Ministério da Saúde e um dos coordenadores do programa.
O ceticismo natural quanto a uma “plataforma única, centralizada, compartilhada e pública” não é sem sentido. Não faltam frustrações ao redor do mundo quanto a essa empreitada. A Austrália, por exemplo, criou em 2016 uma agência nacional para cuidar do tema (Australian Digital Health Agency), que desenvolveu um programa nacional de eHealth baseado em identificadores únicos e controlados pessoalmente pelos cidadãos. Ainda em fase operacional, o programa conta hoje com mais de 6 milhões de pacientes registrados (somente um quarto dos australianos) e 13,4 milhões de provedores de serviços. Em 2019, todos os australianos passaram a ter o seu “My Health Record”, também contando com a opção de ‘não-adoção’ por parte do usuário. A plataforma oferece suporte a prescrições, notas médicas, referências e laudos de diagnóstico por imagem, podendo os pacientes visualizar seus dados clínicos e controlar quem pode acessá-los (além de poderem adicionar suas próprias informações sobre alergias, sintomas, reações adversas, etc.). Todavia, embora a iniciativa seja sólida, caminha a passos lentos, como tudo no ecossistema da saúde. No Canadá, da mesma forma, o EHR único cresce vagarosamente (projeto iniciado em 2006), sendo as províncias e os territórios responsáveis pelo desenvolvimento de suas próprias plataformas, financiadas pelo Estado e apoiadas pelo programa Canada Health Infoway. Não existe uma “estratégia única e centralizada para implementação de um RES”, ou mesmo qualquer index nacional do paciente. Hoje, mais de 95% dos médicos de família (GPs) do país usam EHRs (inúmeros modelos), mas os pacientes têm acesso limitado às suas próprias informações sanitárias digitais.
Na China, quase todos prestadores de serviços configuraram o seu próprio EHR. Nos hospitais chineses, eles são vinculados aos Seguros de Saúde, com ‘identificadores exclusivos por paciente’ (carteira de seguro), mas com uma enorme variabilidade de ferramentas, não sendo, em geral, integradas ou interoperáveis. Assim, os pacientes ainda são obrigados a trazer consigo um printer do RES quando transitam por diferentes unidades de atendimento. Mesmo se os hospitais pertencerem a uma mesma instância pública, ou ao mesmo departamento local, eles possuem diferentes plataformas que convivem numa ‘babel clínico-informacional’ absolutamente caótica. No Reino Unido de hoje, existe um ‘número único do NHS’ atribuído a cada paciente (identificador exclusivo). Sendo talvez a nação com maior experiência pública em ‘EHRs-universais’, o NHS parou de só “pedir colaboração” e passou a adotar posturas mais impositivas. Todos os históricos clínicos envolvidos no primary care são informatizados (por lei). Desde abril de 2015, todas as clínicas de GPs são contratualmente obrigadas a oferecer aos pacientes opções de agendar-consultas e solicitar prescrições-online. A partir de 2016, as clínicas foram também obrigadas a ‘oferecer aos pacientes’ acesso a seus próprios “registros detalhados”, incluindo informações sobre diagnósticos, medicamentos, tratamentos, imunizações e resultados de exames. Quando os registros eletrônicos não estão disponíveis, como na Odontologia, eles podem solicitar cópia em papel. Mesmo assim, uma plataforma única, nacional, pública, integrada e operando em tempo real com cada unidade de atendimento ainda permanece uma promessa.
Na Alemanha, desde 2015 os medical-cards (chip eletrônico) são utilizados por todos usuários do SHI (Statutory Health Insurance). Os cartões contêm informações triviais, como o nome, endereço, data de nascimento e detalhes da cobertura do seguro, além da situação em relação a despesas suplementares. Ocorre que desde 2019 a Alemanha dá um gigantesco salto em digital health practices, já mostrando grandes avanços em suas políticas públicas de data-shared. No caso de Israel, os avanços são indiscutíveis. Os Planos de Saúde utilizam EHRs, que conectam todos os médicos de atenção primária, especialistas, laboratórios e farmácias. Os hospitais estão informatizados, mas sem uma integração completa e transversal com os Planos de Saúde. Nesse sentido, o Ministério da Saúde lidera um grande projeto nacional para intercâmbio de dados clínicos, objetivando compartilhar informações sanitárias em “todas as esquinas sanitárias do país”. No Japão, a Olimpíada passou a ser um grande desafio de interoperabilidade. Os “EHRs-universais” foram desenvolvidos apenas como experimentos em algumas áreas, sendo ainda pequena a integração sistêmica entre provedores. O governo estuda (há anos) as questões técnicas e jurídicas para estabelecer uma ‘rede nacional de informações em saúde’, que embora ousada não considera qualquer acesso dos pacientes aos seus dados. Surpreendentemente o Brasil está mais empenhado do que nunca em ações longitudinais para compartilhamento de dados, já propondo um index único capaz de propelir um RES de amplitude nacional. Só o tempo dirá. Aliás, um tempo que a pandemia espremeu e esgotou.
A plataforma “Mon Espace Santé” é uma “obra de combo”, que não pode ficar reclusa unicamente a participação do Estado. Está centrada no cidadão, exige participação multisetorial e depende integralmente da adesão do “dono da dor” e daqueles que dele cuidam. Talvez esteja nessa conjunção a sua maior força, exatamente onde outros países falharam. “O cidadão é o controlador. Nosso espaço digital foi dotado de ergonomia para que os próprios cidadãos possam armazenar seus dados. O design foi pensado com grupos de pacientes, que nos alertaram, por exemplo, como nomear os arquivos para que tudo fosse compreensível. Sobretudo, caberá a cada cidadão alimentar os dados no ‘espace’, fotografando, por exemplo, um laudo de exame para compartilhamento médico, sempre autorizando quem poderá acessar os dados”, explicou Pon. Implementações de prontuários clínicos únicos, eletrônicos e públicos poderão ser comuns em poucos anos. Sobra ciência de dados e máquinas inteligentes para a sua criação e implementação. Talvez sejam necessários mais anos do que desejássemos, pois não é mais a tecnologia que obstaculiza a sua aurora, mas o obscurantismo daqueles resistem em sua adoção. Esse é o mais árduo desafio clínico-operacional a ser enfrentado neste século.