fonte: Folha de SP
por Marcia Castro, professora de demografia e chefe do Departamento de Saúde Global e População da Escola de Saúde Pública de Harvard
O Sistema Único de Saúde (SUS), uma conquista de movimentos sociais, é um dos maiores mecanismos de redução de desigualdades em saúde que o Brasil já teve.
Ao longo de 30 anos, o SUS teve papel fundamental na redução da mortalidade infantil, de mortes e hospitalizações evitáveis, de iniquidades raciais na mortalidade, de desigualdades no acesso a atenção primária, na produção de vacinas e imunização da população, e na distribuição de medicamentos sem custo, dentre outras conquistas.
Desde sua criação, o financiamento do SUS não tem sido ideal para permitir a universalidade prevista na Constituição.
A instituição do teto de gastos em 2016 impôs dificuldades ainda maiores. Um estudo publicado na Revista Lancet em 2019 estimou que o teto de gastos não só poderia reverter conquistas do SUS, mas que o retrocesso seria maior em áreas mais vulneráveis, o que aumentaria as desigualdades regionais em saúde. O que era uma estimativa virou realidade.
A chegada da pandemia de Covid-19 no Brasil encontrou o SUS extremamente subfinanciado. A pífia atuação do governo federal na resposta à pandemia tornou a situação ainda pior. Entretanto, não fosse o SUS, muito mais do que 662 mil vidas teriam sido perdidas.
O trabalho de cada pessoa que move a complexa máquina de atenção à saúde (o que inclui portaria, triagem, segurança, transporte, lavanderia, limpeza, cozinha, atendimento médico, exames laboratoriais, enfermagem, cirurgia etc.) foi incansável. Muitos perderam a vida.
Essa realidade do SUS foi brilhantemente retratada no documentário Quando falta o ar. Produzido pelas irmãs Ana e Helena Petta, o documentário foi o vencedor do É Tudo Verdade, o 27º. Festival Internacional de Documentários, o mais importante prêmio do gênero na América Latina.
A morte, tão constante durante a pandemia, é um tema presente no documentário. A genialidade da obra, entretanto, está em ter trazido o dia a dia dos trabalhadores do SUS durante a pandemia, o saber ouvir e cuidar, a empatia e a solidariedade, os gestos de carinho, e a coragem de enfrentar o medo apesar da exaustão emocional.
Ao mostrar os desafios do atendimento a populações ribeirinhas na Amazônia, a rotina de uma UTI, o trabalho em uma unidade prisional e a rotina de agentes comunitários de saúde e médicos de família, o documentário expõe uma realidade ignorada por uma parcela da população brasileira.
Quando falta o ar é um relato humanizado da vitória de um sistema de saúde que remou contra a maré para salvar vidas, é uma obra de arte e de conscientização social. Deve ser visto por todos que se importam com o Brasil.
Durante a vacinação contra a Covid-19 foram comuns as manifestações de apoio ao SUS com cartazes, declarações e postagens orgulhosas de cartões de vacinação em redes sociais. Esse apoio precisa continuar.
As críticas, tão comuns ao SUS antes da pandemia, deveriam se transformar em cobranças da sociedade para que as lideranças priorizem a atenção à saúde com equidade e, portanto, fortaleçam o SUS. Criticar sem buscar mudança é inútil.
Como disse a médica de saúde da família Rafaela Pacheco, no documentário Quando falta o ar, “O SUS é uma política de estado, não é uma política de governo.” Governos ruins vêm e vão. Causam retrocessos. Mas o SUS há de prevalecer. Caso contrário, 160 milhões de pessoas no Brasil não teriam acesso a saúde.
Que a importância do SUS durante a pandemia, apesar das dificuldades, jamais seja esquecida. E que a necessidade de um sistema de saúde universal e de qualidade no