fonte: Folha de SP
por Arthur Aguillar, diretor de Políticas Públicas do Instituto de Estudos Para Políticas de Saúde (IEPS); Esther Rosalen, diretora do Better Health Programme (BHP), programa de cooperação do governo britânico no Brasil; Maria Letícia Machado, gerente de Programas do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS).
A cidade de Altamira, no Pará, é imensa. Nela existem povoados e vilas que estão a mais de mil quilômetros da sede, distância superior ao caminho em linha reta entre São Paulo (SP) e Porto Alegre (RS). Dentro desse cenário, garantir que a população local tenha acesso perene a assistência médica parece um desafio impossível: de fato, muitos territórios de difícil acesso não conseguem atrair e reter médicos por muito tempo. A conta fica para a população, que tem seus direitos e sua saúde prejudicados. A telemedicina pode nos ajudar a virar esse jogo. No Brasil, estão em curso alguns pilotos promissores na utilização dessa tecnologia, em regiões onde os médicos muitas vezes não chegam.
A Atenção Primária é a espinha dorsal do nosso sistema de saúde. Esse nível de atenção está orientado à promoção, proteção e manutenção da saúde, o que pressupõe um cuidado integral e que considera, ao mesmo tempo, a autonomia dos indivíduos no próprio cuidado, as dinâmicas sociais existentes nos territórios e o impacto dos determinantes sociais sobre os resultados de saúde. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a Atenção Primária, cujas Unidades Básicas de Saúde (UBS) são a principal estrutura física para a oferta de serviços, é capaz de resolver entre 80 e 90% dos problemas de saúde sem a necessidade de o paciente buscar um pronto-socorro ou emergência.
Do ponto de vista da garantia do acesso, um dos principais desafios está na dificuldade de alocar e manter médicos de família e equipes de saúde da família completas, o que passa pela disposição geográfica das unidades, disponibilidade de infraestrutura adequada para o trabalho e pela oferta de salários competitivos. Esses problemas, em alguma medida, podem ser solucionados com o apoio de tecnologias já disponíveis no mercado. Levando em consideração a alta demanda por profissionais de saúde ao longo da pandemia de Covid-19, desde novembro de 2021, o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (HCFMUSP) junto com o governo do Reino Unido, está testando um novo modelo de Atenção Primária Digital.
Com o uso de tecnologia de vídeo chamada, uma médica de família em São Paulo foi conectada a uma UBS em Paissandu. A cidade, que também está localizada no Pará – um dos dez estados brasileiros com menor densidade populacional (6,07 segundo o último Censo do IBGE) -, a despeito de ter aproximadamente 30 mil moradores, conta com 10 UBS e apenas dois médicos alocados presencialmente para atender toda a região. No projeto piloto, o paciente se direciona à UBS e é recebido pela equipe de enfermagem que realiza os procedimentos pré-consulta e determina o tipo de atendimento a ser realizado. Assim, a médica de família à distância realiza a consulta por vídeo com o apoio da equipe de enfermagem que acompanha o usuário em toda a consulta. Ao final, o paciente recebe da equipe de enfermagem o tratamento recomendado e/ou orientações sobre outros cuidados e encaminhamentos. Em dois meses de testes, 30% da população local foi atendida via teleconsulta. E, de todas as consultas realizadas, 94% das queixas foram resolvidas ali mesmo na unidade de saúde.
A experiência britânica, que tem sido adaptada para a realidade brasileira por meio da cooperação entre o HCFMUSP e o governo do Reino Unido, levou em consideração o que funcionava melhor para cada população atendida colocando sempre o usuário e o desfecho satisfatório do seu caso como uma prioridade. Em números, o National Health Service (Serviço Nacional de Saúde) desde o início da pandemia realiza 60% das consultas por vídeo ou outras formas digitais e a expectativa é que o atendimento por esses canais se mantenha em 50% mesmo com a reabertura dos centros de saúde.
No Brasil, o HCFMUSP criou o Grupo de Experiência do Paciente, o primeiro em um hospital público, que conta com pacientes de diferentes institutos, com situações de saúde diversas, de variadas regiões de São Paulo, homens e mulheres. Mensalmente, o grupo, liderado por uma equipe clínica e administrativa do hospital, se reúne para testar novas ideias com os pacientes e receber feedbacks sobre as iniciativas de saúde digital que estão sendo implementadas.
Também no escopo da cooperação entre o HCFMUSP e o governo do Reino Unido, olhando para o uso de telemedicina em outros níveis de atenção à saúde, está sendo realizada a expansão e sustentabilidade da iniciativa TeleUTI, atualmente presente em 27 Estados. A iniciativa busca reduzir a mortalidade materna, fetal e neonatal por meio de teleconsultas entre as equipes de UTI do HCFMUSP e as UTIs conectadas. Por meio de capacitação de equipes à distância e discussões de casos individuais entre as equipes com o HCFMUSP, foi possível reduzir em 20% a mortalidade materna nos hospitais participantes do programa; em média, a permanência em UTI foi reduzida em 30%.
Os resultados do projeto como um todo apontam caminhos animadores para a adoção de teleconsultas no Brasil como uma possibilidade concreta de ampliação do acesso à saúde. Um passo importante a ser dado diz respeito à regulamentação da prática de forma permanente para além do uso emergencial durante a pandemia de Covid-19. Associado a isso, estão as necessidades de formação de profissionais e padronização de protocolos para a adoção das novas tecnologias, considerando aspectos técnicos e de bioética, bem como a disponibilização de infraestrutura adequada para a execução dos serviços. Por fim, o avanço de iniciativas de saúde digital abre portas, ainda, para o aprofundamento da discussão sobre a melhoria da qualidade do cuidado de forma humanizada tendo a experiência do usuário como fator preponderante.